Cultura
Edição 104 > Na vanguarda russa as raízes de um novo tempo
Na vanguarda russa as raízes de um novo tempo
Neste segundo semestre de 2009, precisamente entre 15 de setembro e 15 de novembro, o Centro Cultural Banco do Brasil trouxe para São Paulo uma Exposição com mais de cem obras de arte, de 52 artistas russos, pertencentes ao Museu Estatal Russo de São Petersburgo. É a maior e mais importante mostra de arte russa já exibida em nosso país. A exposição, que já passou por Brasília e Rio de Janeiro, foi organizada pelos curadores cubanos Rodolfo de Athayde e Ania Rodríguez

“A arte deve ligar-se estreitamente com a vida. Fundir-se com ela, ou perecer”.
(Maiakóvski)
A exposição Virada Russa revela as diversas tendências nas artes plásticas russas dos finais do século XIX e início do XX. Entre as obras se encontram
telas, cartazes, esculturas, peças de vestuário, desenhos gráficos e louças do Museu de São Petersburgo, além de dois filmes, um sobre a vanguarda russa e outro sobre a obra de Kazimir Maliévitch.
No final do século XIX, os movimentos artísticos que ficaram conhecidos pelo nome de vanguarda russa mudaram os rumos da história da arte naquele país em todos os setores: artes plásticas, música, teatro, poesia, arquitetura, e no cinema que começava a nascer. Até por volta dos anos 1930, a Rússia assistiu a um fervilhar de movimentos artísticos de diversos matizes plenamente integrados às transformações que a sociedade russa vivia.
Programas e manifestos surgiam a partir de grupos e associações de artistas, nesse momento onde havia um fértil debate de ideias em meio à nascente
intelligentsia russa. Esse espírito, que norteava intelectuais e artistas da virada do século XIX para o século XX, estava em perfeita harmonia com o
cenário histórico em que mudanças urgentes se faziam necessárias em todos os aspectos da vida social daquele povo. Aquela efervescência de ideias e aquele momento de alta criatividade e produtividade artística “puseram em circulação ideias destinadas a exercer efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras” (i). Como disse em entrevista exclusiva à revista Princípios (leia abaixo), o curador da mostra, Rodolfo Athayde, pode-se mesmo dizer que aqueles foram os tempos onde se gestou a Revolução bolchevique de 1917.
Mas voltemos um pouco atrás na história russa, para compreender um pouco melhor o surgimento dessa vanguarda de artistas e intelectuais.
A partir de 1697, Pedro I, mais conhecido como Pedro, o Grande, iniciou um processo muito intenso de europeização da Rússia. Tendo enviado expedições à Europa – das quais ele mesmo participou –, levou para aquele país várias centenas de mestres, técnicos, médicos e homens letrados, que foi recrutando pelos países por onde passou. Além disso, levou cartas topográficas, livros e invenções. Em relação aos costumes e à moda, introduziu a forma de vestir à francesa e ordenou que todos os homens russos que insistissem em usar barba longa (costume tradicional) pagariam um imposto.
Pedro, o Grande, também mandou traduzir para o russo diversas obras em francês, alemão e inglês. Em 1703 mandou edificar São Petersburgo, a nova capital, num projeto urbanístico inspirado nos padrões ocidentais. Ainda no mesmo ano, mandou construir Peterhof, cidadezinha próxima a São Petersburgo, conhecida por um impressionante complexo de palácios, concluído em 1725, último ano do seu reinado.
Ora, toda essa ocidentalização levou modificações estruturais à vida social e cultural do povo russo. Nas artes plásticas, por exemplo, estava no auge a
pintura de ícones, de longa tradição, cujo apogeu se estendeu dos séculos XIV ao XVIII. Mas após o aculturamento produzido por Pedro, o Grande, os
artistas plásticos começaram a se voltar para temas laicos, como paisagens e figuras, fugindo da temática religiosa anterior. Até Pedro, o Grande, as
representações bidimensionais da figura humana eram combatidas pela igreja ortodoxa. Mas com este czar, muitos artistas foram enviados a escolas de arte da Europa, especialmente da França, onde aprendiam noções de pintura, como de gama cromática e de valor pictórico, ausentes nos pintores de ícones. O cavalete e a tela surgiram pela primeira vez, impondo um processo de pintura diferente. Os pintores de ícones, até então, como o famoso Andrei Rubliev, usavam “tábuas de madeira ‘viva’, trabalhadas por dias e meses, antes que se inscrevessem os primeiros contornos ou se aplicassem as cores à base de ovo e de água” (ii).
Defesa da cultura russa
Na contramão dessa europeização cultural e em meio à efervescência política e ideológica do século XIX, os artistas se rebelaram e passaram a criar
movimentos de defesa da cultura russa, antes descartada como bárbara e rude. Os artistas rejeitaram o padrão ocidental e buscaram criar uma cultura
nacional nova que fosse baseada no camponês e nas tradições artísticas nacionais, de há muito esquecidas. Voltaram-se para a busca das raízes culturais do povo. Mesmo artistas mais abstratos, como Vassili Kandinski, mostravam um colorido que ele mesmo admite ter descoberto nas izbás, as casas dos camponeses que tanto o tinham encantado em seus tempos de jovem estudante de arte. Mikhail Lariónov, um dos precursores da vanguarda russa, se inspirou na arte popular urbana, onde o atraíam os painéis e letreiros de lojas e oficinas feitos por artesãos, assim como os lubok – xilogravuras camponesas – que também inspiraram muitos outros pintores. Lariónov e Gontchárova organizaram exposições de ícones, luboks e peças do artesanato popular.
Era uma época de experimentações, de busca de novos conteúdos, de novas formas, de novas cores e de um novo mundo. O espírito da época – zeitgeist, como se diz em alemão – atravessava o clima intelectual e cultural desse período: espírito de rebeldia, de contestação, de revolução social, política e cultural. Grupos se formavam, movimentos novos nasciam a cada dia, enquanto jovens artistas produziam – como Natalia Gontchárova, uma das mais importantes artistas da época. Ela se preocupava em evocar as tradições populares em suas obras, reproduzindo cenas da vida camponesa e trazendo inovações baseadas na tradição dos ícones. Uma delas, Os Evangelistas – presente na mostra –, causou escândalo em Moscou quando exibida em 1912 numa exposição denominada O Rabo do Burro. A obra, por se assemelhar aos ícones e por ser de tema sacro, não poderia estar presente numa mostra profana como aquela – de uma arte de ruptura – e, por isso, foi censurada.
Outro pintor presente na mostra, Vladimir Tátlin, inicialmente um pintor de ícones, começou a criar seus quadros em relevo nos meados da década de 1910. Sua ideia básica era fazer com que os objetos de sua obra saltassem da tela para fora, reconstruindo novas formas tridimensionais. Seu trabalho
Contrarrelevo de Esquina, complexo em aço, alumínio, zinco e madeira – presente na mostra –, traduz o mundo industrial que ele via surgindo, e passava a adotar formas e materiais da moderna tecnologia. Era o artista-engenheiro engajado na construção de objetos concretos. Tátlin criou também duas maquetes de obras que ele intitulou Homenagem à III Internacional e Projeto para a Tribuna de Lênin. Ele foi o precursor do movimento que depois ficou conhecido como Construtivista, juntamente com o pintor e fotógrafo Alexandr Rodtchenko.
Kuzma Petrov-Vodkin apresenta trabalhos em óleo de caráter realista. Foi pintor, artista gráfico e cenógrafo, tendo estudado em diversas escolas de arte
em Rússia, Alemanha e França. Tornou-se o primeiro presidente da Associação dos Pintores de Leningrado, em 1932, e foi representante no Conselho de Deputados de Operários, Camponeses e Soldados do Exército Vermelho. Seu entusiasmo pelas obras do pintor francês Matisse e pelos cubistas não foi menor do que sua admiração pela arte tradicional dos ícones, cujo resultado foi uma série de pinturas de caráter narrativo pronunciado, figurativo.
Pavel Filónov, um dos organizadores do grupo futurista “União da Juventude”, foi o criador do cenário para a primeira peça teatral de Maiakóvski, Vladimir
Maiakóvski, e, assim como os outros artistas, estava envolvido diretamente com a Revolução de 1917, que ele saudou ardorosamente. O trabalho de Filónov apresenta uma delicadeza e sensibilidade de toque incrível. Suas telas em óleo dão a impressão de aquarelas, com finas e leves pinceladas. Sabe-se que ele trabalhava meticulosamente em suas pinturas, 18 horas por dia, cujos detalhes eram rigorosamente planejados.
Nessa exposição também encontramos obras de Marc Chagall, Vassili Kandinski, Kasimir Maliévitch, Mikhail Matiútchin, Maria e Boris Énder, que seguiram caminhos diversos na arte plástica. Mais voltados para o abstracionismo, suas obras também significavam uma linguagem de ruptura e, mesmo que se voltassem mais à valorização da cor e da forma, eram coerentes com o sonho de construção social de um novo mundo. Participavam desses diversos movimentos de artistas que buscavam formatar visualmente a nova sociedade. Nenhum deles foi insensível às guerras, por exemplo, e organizaram várias exposições em ajuda aos feridos.
Arte e vida
Esta é uma característica muito marcante daquele rico período em que se desenvolveram as artes de vanguarda. Nos pintores mais realistas até nos mais radicalmente abstratos como Maliévitch, nota-se um profundo envolvimento entre vida e arte. “A Revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada (...) – uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política” (iii), diz a pesquisadora inglesa Camilla Grey, no começo dos anos 1960. O próprio Maliévitch, que defendia a arte abstrata como uma forma rebelde dentro das artes plásticas, afirmava: “o cubismo e o futurismo foram as formas revolucionárias da arte que prenunciaram a revolução na vida política e econômica de 1917” (iv).
Evguenia Petrova, hoje uma das curadoras do Museu Estatal de São Petersburgo, reconhece – em seu texto publicado no catálogo da mostra brasileira – que a vanguarda russa representou um rico momento de florescimento de diversas tendências artísticas numa conjuntura social e política onde se preconizava o surgimento de um mundo novo e onde se preparavam, sob o comando de Vladimir Lênin, os passos para uma mudança estrutural na sociedade russa, trazida pela Revolução bolchevique. Até mesmo o famoso – e louvado no mundo ocidental – Quadrado Negro, de Maliévitch, “e outras obras-primas da vanguarda não surgiram nem no lugar vazio e nem de repente. Eles nasceram graças aos processos notadamente criativos da cultura russa do final do século XIX-início do século XX” (v).
Conforme afirmou Rodolfo de Athayde, essa vanguarda promoveu “uma mudança extraordinária na História” exatamente por causa do vigor artístico e
intelectual característico daqueles anos. Essas “obras evidenciam a inquietude cultura dos anos que precederam o Outubro Vermelho, período em que o desejo de renovação resultou num contexto de transgressões onde os artistas passaram a buscar o seu próprio caminho na arte”, diz o curador cubano.
Virada Russa apresenta, então, a força viva presente na cultura russa, cujos reflexos podem se notar naqueles quadros ricos em pesquisa e experimentação de cores, desenhos, formas e temáticas, que testemunham a profundidade da alma do povo russo. É uma grande demonstração de que arte e vida caminham lado a lado, e que deve ser assim, mesmo a contragosto dos que hoje preconizam uma arte abstratamente vazia. Arte sem vida é arte sem alma.
Entrevista com Rodolfo de Athayde
O curador da mostra Virada Russa, o cubano Rodolfo Athayde, radicado no Rio de Janeiro, concedeu uma entrevista exclusiva à revista Princípios, sobre essa exposição.
Princípios – Qual o seu objetivo ao idealizar esta exposição sobre os artistas russos no Brasil?
Rodolfo – Nossa intenção, minha e de Ania Rodrigues, é chamar a atenção do público brasileiro para a qualidade da arte plástica russa do final do século
XIX até por volta de 1935. Mostrar para o público as fontes e as raízes da arte contemporânea mundial. Trouxemos artistas como Kandínsksi, Chagall,
Maliévitch – os mais conhecidos –, mas também dezenas de outros, como Rodchenko, Gontchárova e Pavel Filónov, ainda desconhecidos do público brasileiro.
Em especial Filónov tem uma pintura de alta qualidade plástica, que não deixa nada a desejar aos pintores ocidentais, como Paul Klee, por exemplo.
A arte russa, assim como a cubana, mostra as diferenças e a riqueza da arte que é feita fora da Europa. Ano passado trouxemos também, eu e a Ania, para o Brasil, uma exposição de artes plásticas cubanas, numa amostra da criatividade dos artistas cubanos. Desta vez, a exposição sobre arte russa possibilita um maior conhecimento sobre a vanguarda russa, movimento tão fundamental para as artes no mundo todo.
Princípios – O que foi a vanguarda russa?
Rodolfo – Esses grupos de artistas que ficaram conhecidos como a Vanguarda Russa representaram um conjunto de tendências artísticas vitais para o
desenvolvimento das artes no mundo dos séculos XX e XXI. Aqueles artistas foram os primeiros a fazer experiências com novos materiais, cores, texturas, objetos e até com a geometria. Eles faziam experimentos realmente radicais para os padrões da época, como se pode ver na exposição, e influenciaram direta ou indiretamente o desenho contemporâneo. Eles foram os responsáveis por fixar uma estética da modernidade, aqui no Brasil representada pelos Neoconcretistas da década de 1950 – artistas brasileiros que se basearam nos princípios da vanguarda russa.
Eles também, sem dúvida, influenciaram o design moderno, especialmente o design gráfico, pois foram os primeiros a criar uma estética visual gráfica, como podemos ver através dos famosos cartazes russos. Com esses artistas, as artes gráficas foram enriquecidas com cartazes grandes, de cores chapadas, traços geométricos novos e com jogos e alterações de perspectiva. Eles revolucionaram mesmo as artes visuais!
Princípios – E o realismo socialista?
Rodolfo – O realismo socialista foi uma experiência negativa. Com a imposição do decreto da arte do realismo socialista em 1935 o Estado impediu o
desenvolvimento desses movimentos artísticos, e alguns artistas deixaram a URSS. O Estado queria que a arte representasse através do retorno ao realismo figurativo radical as ideias de um homem novo e uma sociedade nova. Mas aquelas figuras hercúleas, descaracterizadas, fictícias, sem base na realidade, figuras de um mundo sem drama, irreal. Isso foi muito negativo porque cortou o movimento artístico natural que nascia do meio daqueles artistas de vanguarda.
Princípios – Qual sua opinião sobre a arte contemporânea?
Rodolfo – Muito repetitiva. Os artistas atuais batem sempre sobre a mesma tecla, usando a mesma linguagem há mais de cem anos inaugurada por aqueles artistas. Naquele momento, há cem anos, a arte tinha uma conexão com o mundo a seu redor e com tudo o que havia. Na Rússia do começo do século XX, os artistas produziam uma arte nova como um movimento radical mesmo e em perfeita consonância e harmonia com a Revolução bolchevique. Esses movimentos geraram o movimento social mais importante na história do mundo no século XX: a Revolução bolchevique de 1917. E hoje a arte contemporânea pretende repetir os padrões artísticos dos princípios do modernismo e da vanguarda russa, mas vemos que essa forma foi se esvaziando, com o tempo, e hoje é vazia de conteúdo. A arte contemporânea se liga puramente na questão formal, sem peso algum na atual circunstância, sem conexão com nada, sem sentido.
Mazé Leite é artista plástica, membro do Ateliê de Arte Realista de Maurício Takiguti e militante do PCdoB de São Paulo
Notas
(i) BERLIN, Isaiah. “O Nascimento da Intelligentsia russa”, p. 241, In Pensadores Russos.
(ii) MARCADÉ, Jean-Claude. “Ícone e Vanguarda na Rússia, duas faces maiores da arte universal”. In 500 Anos de Arte Russa.
(iii) GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-1922.
(iv) Idem.
(v) PETROVA, Evguenia. “Arte Russa nos Anos de Vanguarda”. In Virada Russa.
Bibliografia
BERLIN, Isaiah. “O Nascimento da Intelligentsia russa”, p. 241, In Pensadores Russos. São Paulo: Companhia das Letras.
MAIAKÓVSKI, Vladimir. “Resumo da palestra Abaixo a Arte, Viva a Vida”. In Maiakóvski – Prosa e Poesia.
MARCADÉ, Jean-Claude. “Ícone e Vanguarda na Rússia, duas faces maiores da arte universal”. In 500 Anos de Arte Russa. Rio de Janeiro: Brasil Connects,
2002.
GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-1922. São Paulo: Worldwhitewall, 2004.
PETROVA, Evguenia e outros. Virada Russa. São Paulo: Palace Editions. 2009.