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Edição 141 > A Nakba (“Catástrofe”) e a limpeza étnica sionista
A Nakba (“Catástrofe”) e a limpeza étnica sionista
O 15 de maio de 2016 assinala 68 anos da expulsão dos palestinos de suas terras

Há seis mil anos atrás, a Palestina – encruzilhada das civilizações egípcia, babilônica, assíria e hitita, entre outras – foi fecundada por emigrações semitas, inicialmente de cananeus (“Terra de Canaã”), depois de arameus e hebreus, além de povos de origem egeia, como os filisteus (“Filastin”, de onde vem Palestina). Com maior ou menor independência frente aos grandes impérios regionais, a Palestina foi sucessivamente dominada pelos cananeus (ou fenícios), filisteus e judeus. Estes últimos dominaram a Palestina por um século (1000 a 900 a.C.), além de efêmeros reinos, em áreas restritas da Palestina (de Israel e Judá). Depois, a Palestina caiu, sucessivamente, sob o domínio babilônio, assírio, persa, macedônio, romano, islâmico e otomano. Fruto dessa atribulada trajetória, em 1880, dos 500 mil habitantes que povoavam a Palestina, apenas 24 mil eram judeus (5%), havendo amplo predomínio de populações árabe-palestinas.
Frente às perseguições de que os judeus eram vítimas, principalmente na Europa Oriental, em 1897 reuniu-se, em Basileia, Suíça, o 1º Congresso Sionista, que propôs a criação de um “Estado Judeu” para acolher todos os judeus do mundo.
Em 1917, a Grã-Bretanha – em função de seus interesses no Oriente Médio – encampou essa ideia e passou a defender que a Palestina se tornasse a “pátria dos judeus”, ignorando totalmente as populações árabe-palestinas, que aí viviam há milênios. Após a 1ª Guerra Mundial, já como mandatária da Palestina, a Grã-Bretanha incentivou a colonização judaica, afrontando as populações árabe-palestinas que aspiravam sua independência.
Em fevereiro de 1947, a Grã-Bretanha anunciou a sua retirada da Palestina, até 15 de maio de 1948 – “lavando as mãos” pelo que aconteceria após sua saída, em um país dilacerado pelo conflito entre palestinos e judeus, por ela provocado – e entregou a solução do problema às Nações Unidas. Nesse momento, os judeus já eram 600 mil (33%) e os árabe-palestinos 1,2 milhões (66%).
Em 29 de novembro de 1947, a ONU aprovou a Resolução 181, determinando a partilha da Palestina, sem qualquer consulta ao seu povo, o verdadeiro dono do país. Os judeus, vindos de outros continentes, um terço da população, receberam 57% do território palestino. Os árabe-palestinos, dois terços da população e habitantes milenários da Palestina, receberam apenas 43% do seu próprio país. Jerusalém – lugar sagrado de muçulmanos, judeus e cristãos – passaria à administração da ONU.
Inconformados, os árabes afirmaram que não se sentiam obrigados a cumprir essa decisão, pois ela desrespeitava a autodeterminação do povo palestino. Os sionistas – que defendiam uma Palestina unicamente judia – aceitaram a partilha, vendo-a como um primeiro passo para sua posterior expansão a toda Palestina:
“O Estado judaico que no momento nos é oferecido não é o objetivo sionista. Dentro desta área não é possível resolver a questão judaica. Mas ele (...) consolidará na Palestina, no mais breve prazo possível, a verdadeira força judaica que nos conduzirá à nossa meta histórica (...) O Estado judaico terá um extraordinário exército (...) não seremos impedidos de nos estabelecer no resto do país”..[GURION, Ben. Citado por FINKELSTEIN, Norman. Imagem e realidade do conflito Israel-Palestina. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 70]
A NAKBA (“CATÁSTROFE”) E A LIMPEZA ÉTNICA SIONISTA
Tão logo a partilha foi aprovada, os sionistas prepararam-se para ocupar o resto da Palestina. Além de numeroso armamento conseguido nos EUA, compraram grande quantidade de armas tchecas. Por fim, apossaram-se de boa parte dos arsenais das tropas inglesas em retirada. A essa altura, a Haganah já contava com 50.000 homens e passou a atuar junto com as organizações terroristas Irgun e Stern.
A questão era como livrar-se das 400 aldeias e mais de 800 mil palestinos que haviam ficado no “Estado Judeu” previsto na partilha da ONU. Os sionistas iniciaram, então, uma série de ações militares contra os povoados rurais palestinos. Em dezembro de 1947, Ben Gurion determinou um “sistema de defesa agressiva; a cada ataque árabe devemos responder com um golpe decisivo: a destruição do lugar ou a expulsão dos residentes, paralelamente à captura do lugar”. (...) Quando estivermos em ação (...) devemos lutar com força e crueldade, sem permitir que nada nos detenha”. [FLAPAN, Simha. Birth of Israel. Em: FINKELSTEIN, p. 160]
Como os palestinos não atacaram, em dezembro de 1947 foram golpeadas as aldeias de Deir Ayyub e Beit Affa. Pouco depois, foi atacada a aldeia de Khisas: “Os soldados judeus atacaram a aldeia em 18 de dezembro de 1947 e começaram a explodir casas ao azar, em plena noite, enquanto seus ocupantes ainda dormiam profundamente. Quinze aldeãos, cinco deles crianças morreram durante o ataque.” [PAPPÉ, Ilan. La limpieza étnica de Palestina. Barcelona: CRÍTICA, 2006, idem, p. 89] A seguir, a aldeia escolhida foi Balad al Shaykh: “O ataque teve lugar em 31 de dezembro, durou três horas e deixou mais de sessenta palestinos mortos”. [PAPPÉ, pp. 92-93] Essas ações se intensificaram em janeiro e fevereiro de 1948.
Em março de 1948, os sionistas aprovaram o “Plano Dalet”, visando a limpeza étnica da Palestina:
“Em (...) 10 de março de 1948, um grupo de onze homens, constituído por veteranos líderes sionistas e jovens oficiais militares judeus, puseram os toques finais a um plano para a limpeza étnica da Palestina. Nessa mesma tarde, foram enviadas ordens militares às unidades sobre o terreno para preparar a expulsão sistemática dos palestinos de vastas áreas do país. As ordens estavam acompanhadas de uma descrição detalhada dos métodos que haviam de ser empregados para desalojar pela força às pessoas: intimidação em grande escala; assédio e bombardeio das aldeias e centros populacionais; incêndio de casas, propriedades e bens; expulsão; demolição; e, finalmente, colocação de minas entre os escombros para impedir o regresso de qualquer um dos expulsos. A cada unidade foi proporcionada sua própria lista de aldeias e bairros selecionados como alvo desse plano geral. Com o nome em código de Plano D (Dalet em hebreu), era a quarta e definitiva versão (...). Uma vez que a decisão foi tomada, se tardou seis meses em completar a missão.” [PAPPÉ, pp. 10-11]
O massacre de 9 de abril de 1948, no povoado de Deir Yassin – quando forças do Irgun e Stern, apoiadas pela Haganah, atacaram e assassinaram 254 pessoas, homens , mulheres, crianças e velhos – é emblemático do que aconteceu em centenas de outras aldeias palestinas, durante esses seis meses de limpeza étnica sionista. Fahim Zaydan, que na época tinha doze anos e, apesar de ferido, sobreviveu, relata: “Nos levaram, um detrás do outro; dispararam a um ancião e quando uma de suas filhas gritou, lhe dispararam também. Logo chamaram meu irmão Muhammad e lhe dispararam na nossa frente e quando minha mãe, que levava a minha irmã nos braços, pois ainda estava amamentando, se lançou sobre ele chorando, também lhe dispararam.” [McGOWAN, Daniel e HOGAN, Matthew C. The Saga of the Deir Yassin Massacre, Revisionism and Reality. Em: PAPPÉ, pp. 130-131] E o historiador Michael Palumbo relata o testemunho dado pelo médico suíço Jacques de Reynier:
“De acordo com De Reynier: ‘a limpeza foi feita com metralhadoras e depois granadas de mão. Foi terminada com facas, qualquer um podia ver isso (...). Uma bonita jovem com olhos criminosos, mostrou-me a faca com sangue ainda pingando, ela me mostrava aquilo como se fosse um troféu’. O comportamento dos terroristas sionistas lembrou o médico da Cruz Vermelha de seu serviço durante a Segunda Guerra Mundial. ‘Tudo o que eu pensava era nas tropas SS que vi em Atenas’. O médico da Cruz Vermelha viu ‘uma jovem apunhalar um casal de velhos sentados na entrada de sua cabana’.” [PALUMBO, Michael, Idem, p. 54. Em: GATTAZ, André Castanheira. A guerra da Palestina: da criação do Estado de Israel à Nova Intifada. São Paulo: Usina do Livro, 2002, p. 112]
Um soldado que participou do massacre de Deir Yassin relatou anos depois:-“(...) não queríamos enterrar as dezenas de cadáveres de árabes porque era trabalho demais e por isso acabamos por queimá-los (...) Jogamos todos os corpos num poço, derramamos gasolina neles e os queimamos. (...) presenciamos uma cena das mais terríveis e chocantes (...) homens do IZL atiravam cadáveres de árabes para dentro de uma casa do alto do telhado, enquanto ardia um gigantesco incêndio. Parecia um crematório. (...) O fedor no ar era insuportável. Outros depoimentos davam conta de ‘residências nas quais famílias inteiras haviam sido fuziladas’ e de mulheres alvejadas nos genitais ‘porque – explicava-se – os combatentes árabes se disfarçavam, de mulheres e os membros do IZL queriam tirar a limpo’.” [FINKELSTEIN, p. 351]
Após a chacina de Deir Yassin, Menahen Begin convocou a imprensa para exibir com júbilo os corpos das vítimas, com o claro objetivo de induzir os palestinos – pelo pavor – ao abandono de suas terras e ao exílio para preservar suas vidas. Posteriormente, os sionistas afirmariam, hipocritamente, que os palestinos haviam abandonado as suas terras “espontaneamente” e, por isso, haviam perdido o seu direito sobre elas.
Menahen Begin confessou: “por todo o país os árabes (...) eram possuídos de um pânico infinito e começavam a fugir para salvar suas vidas Esta fuga em massa logo se transformou em uma explosão enlouquecida e sem controle. Dos quase oitocentos mil palestinos que viviam no atual território do Estado de Israel, só uns cento e sessenta e cinco mil permanecem ali. Dificilmente se pode exagerar a importância política e econômica desse desdobramento.” [BEGIN, Menachen. The Revolt: Story of the Irgun. Nova York: Henry Schuman, 1951, p. 164. Em: PAPPÉ, p. 356]
Muitas outras localidades palestinas – como Hawassa, Qastal, Khirbet, Nasr ed Deen, Ein az Zeitun, Qisarya, Atlit, Daliyat Al Rawha, Qalunya, Saris, Beit Surik, Biddu, Sasa, entre tantas outras – sofreram o mesmo tipo de atrocidades. Em relação ao ataque a Sasa, realizado à meia noite, o comandante sionista Moshe Kalman declarou cinicamente: “Nos topamos com um vigia árabe que estava tão surpreso que não perguntou ‘min hada-’, quem é-, mas ‘esh hada-’, o que é isso- Um de nossos homens que sabia árabe lhe respondeu com humor ‘hada eshf’, isto é fogo e lhe disparou uma rajada (...) deixamos atrás trinta e cinco casas demolidas e entre sessenta e oitenta cadáveres.” [PAPPÉ, p. 115]
Segundo André Gattaz, “havia certo padrão nas operações: os homens jovens e adultos da cidade eram levados à praça central da aldeia, onde eram fuzilados na frente de seus parentes (...) se seguiam alertas por parte dos sionistas para que os demais fugissem se não quisessem sofrer o mesmo destino. Muitas vezes, lhes era concedida apenas meia hora para deixar suas casas, após o que os que restassem seriam mortos. Nas marchas forçadas que se seguiram (...) milhares de pessoas morreram devido ao calor, às doenças e aos maus tratos por parte dos soldados. Nas aldeias desocupadas, os israelenses passavam ao saque sistemático”. [GATTAZ, pp. 127-128]
Mas os massacres não se limitaram às aldeias rurais: “Outro acontecimento de consequências importantes foi a ocupação sionista das grandes cidades palestinas e a fuga da população urbana árabe. Entre o final de abril e o dia 14 de maio de 1948, os sionistas concentraram seus esforços em Haifa, Jaffa, e Jerusalém, cidades de população mista e que haviam sido destinadas pela ONU ao Estado árabe (as primeiras) ou à administração internacional (Jerusalém).” [GATTAZ, p. 115] Ilan Pappé relata com detalhes os horrores a que foram submetidos os palestinos em Haifa:
“A campanha terrorista judia, que havia começado em dezembro, incluiu bombardeio pesado, fogo de franco-atiradores, rios de petróleo e combustível acesos que baixavam pelo costado da montanha e barris repletos de explosivos (...) se intensificou em abril. No dia 18 desse mês (...) comandante britânico (...) informou que em dois dias as forças britânicas se retirariam (...) era o único obstáculo que impedia às forças judias atacar (e tomar) diretamente as áreas palestinas, nas quais ainda viviam mais de cinquenta mil pessoas. (...) Essa tarefa foi entregue à brigada Carmeli (...) quem estava no comando era Mordechai Maklef (..) e as ordens que deu a suas tropas foram claras e simples ‘Matai a qualquer árabe que encontreis, queimai todos os objetos inflamáveis e forçai as portas com explosivos.’ (...) Quando essas ordens começaram a ser executadas (...) a comoção e o pavor foram tais que, sem empacotar nenhum pertence, as pessoas começaram a deixar a cidade em massa. Movidos pelo pânico se dirigiram para o porto, onde esperavam encontrar um barco ou um bote que os levasse para longe da cidade. (...) Através de alto-falantes se instou a população a se reunir na velha praça do mercado (...) até que se pudesse organizar uma evacuação ordenada pelo mar. (...) Os oficiais da brigada (...) ordenaram a seus homens fixar obuses de setenta e seis milímetros nas ladeiras que dominavam o mercado e o porto (...) e bombardear a multidão reunida (...) quando o bombardeio começou (...) a multidão entrou no porto (...) e dezenas de pessoas saltaram aos botes que ali estavam atracados, e dessa maneira começou a fuga da cidade. (...) ‘Os homens pisoteavam a seus amigos e as mulheres aos seus próprios filhos. Os botes que havia no porto logo se encheram de seres humanos. O amontoamento neles era horrível. Muitos viraram e afundaram, com todos os seus passageiros’.” [PAPPÉ, pp. 134-138]
A ocupação sionista de Jaffa, cidade de maioria árabe, vizinha a Tel Aviv, também foi descrita por Ilan Pappé: “Jaffa foi a última cidade a ser tomada, o que ocorreu em 13 de maio, dois dias antes do final do mandato. (...) A área da Grande Jaffa incluía vinte e quatro aldeias e dezessete mesquitas; na atualidade ainda existe uma dessas últimas, mas nenhuma das aldeias se mantém de pé. (...) cinco mil efetivos do Irgun e da Haganah atacaram a cidade (...) Quando Jaffa caiu, seus cinquenta mil habitantes foram expulsos”. [PAPPÉ, pp. 146-147]
Após a limpeza étnica em Haifa, Acre, Baysan, Nazaré, Lydda, Ramle, Beersheba, Shef Aram, Safed e Jaffa – todas destinadas pelo Plano de Partilha ao Estado Árabe –, restaram poucas localidades com alguma população árabe significativa na Palestina, das quais logo os seus habitantes palestinos também foram expulsos, para dar lugar aos novos imigrantes judeus. Foi o caso da aldeia de Shaykh Muwannis (Munis, como é conhecida hoje), atacada pelo Irgun. Sobre as ruínas dessa aldeia, ergue-se hoje o elegante campus da Universidade de Tel Aviv, com a qual tantas universidades no mundo e no Brasil se orgulham de manter convênios e colaboração. Algumas poucas casas que ali restaram foram convertidas em sede do clube desta “prestigiosa universidade”, cujos alicerces se assentam sobre o sangue e a dor dos palestinos massacrados.
Em despacho da Legação brasileira em Beirute, o ministro Thompson Flores encaminhou ao Ministério das Relações Exteriores correspondência do Frei brasileiro Martinho Penido Burnier – que se encontrava na Palestina realizando estudos bíblicos – em que este relata as pouco conhecidas perseguições às demais religiões não judaicas:
“(...) quero aludir, em primeiro lugar, à conduta desta guerra pelas tropas e autoridades sionistas, sobretudo no que diz respeito às atrocidades cometidas por eles sobre as populações civis e indefesas; aos saques sistemáticos e metódicos de aldeias inteiras ou de certos bairros cristãos de Jerusalém; aos roubos, saques e vandalismos de toda espécie praticados nos edifícios de instituições religiosas. (...) Se passarmos a falar da maneira sionista de conduzir a guerra, temos a tristeza de constatar que eles rivalizam com os nazistas da última guerra mundial, a ponto de que Mr. Neville, Cônsul Geral da França (pessoa todavia mais que insuspeita, dada a sua maior simpatia pelo movimento sionista, antes destas hostilidades) declarou solenemente que ‘28 dias de guerra e 17 dias de trégua ensinaram-me mais sobre o nazismo do que 20 anos de regime de Hitler’ (declaração proferida no nosso convento de Santo Estevão, no dia 27/06/48 e por mim cuidadosamente anotada). (...) Tais abominações foram praticadas ainda no Convento das Freiras de San’Ana, de Haifa; nas Igrejas dos Gregos-Ortodoxos e dos Gregos-Melquitas de Haiffa, na Capela das Irmãs Franciscanas Missionárias do Egito, de Tiberíades, na Igreja dos Gregos-Melquitas de Safet (...)”. [PENIDO BURNIER, Frei Martinho. Legação Brasileira em Beirute, Ofícios Enviados nº 154/194, 05.11.1948. Em: GATTAZ, pp. 130-131]
Desmentindo o mito sionista de que a expulsão da população palestina ocorreu no contexto de uma guerra entre Israel e os países árabes, o historiador israelense Ilan Pappé afirma:
“Tudo isso ocorreu antes que um único soldado regular árabe houvesse entrado na Palestina (...) Entre 30 de março e 15 de maio, as forças judias tomaram duzentas aldeias e expulsaram seus habitantes. Este é um fato que é necessário repetir, pois desmente o mito israelense de que ‘os árabes’ saíram correndo assim que a ‘invasão árabe’ foi posta em marcha. Quase a metade das aldeias árabes já haviam sido atacadas quando os governos árabes finalmente decidiram (a contragosto, como sabemos) enviar suas tropas ao país. Outras noventa aldeias foram arrasadas entre 15 de maio e 11 de junho de 1948”. [PAPPÉ, p. 148]
As atrocidades sionistas prosseguiram durante todo o ano de 1948, sob os olhares complacentes da comunidade internacional e da ONU: “segundo o ex-diretor dos arquivos do exército israelense, ‘em quase todas as aldeias árabes ocupadas por nós durante a Guerra de Independência, foram cometidos atos definidos como crimes de guerra, tais como assassinatos, massacres e estupros’.” [FINKELSTEIN, p. 200].
Outro massacre, ainda mais terrível que o de Deir Yassin, ocorreu em 28 de outubro de 1948, em Ad Dawayima, a cinco quilômetros de Hebron:
“No dia 28 de outubro, meia hora após a oração do meio-dia, recorda o mukhtar, vinte veículos blindados entraram na aldeia desde Qubayba enquanto, ao mesmo tempo, os soldados a atacavam desde o flanco oposto (...) De acordo com a rotina estabelecida, rodearam a aldeia por três lados e deixaram o lado oriental aberto com o objetivo de expulsar em uma hora os seis mil palestinos que existiam na aldeia. Quando isso não ocorreu, os soldados saltaram de seus veículos e começaram a atirar de forma indiscriminada nas pessoas, que correram a refugiar-se na mesquita ou fugiram para Iraq Al Zagh, uma gruta santa que havia ali perto. No dia seguinte, o mukhtar aventurou-se a regressar ao lugar para descobrir horrorizado que os cadáveres de homens, mulheres e crianças – entre os quais se encontrava seu próprio pai – se empilhavam na mesquita e cobriam as ruas. Quando foi à gruta, encontrou a entrada bloqueada por dezenas de corpos. O mukhtar fez um censo da população e concluiu que faltavam 455 pessoas, entre as quais em torno de cento e setenta eram mulheres e crianças. Os soldados judeus que participaram do massacre também referiram às cenas terríveis que se deram na aldeia: bebês com os crânios abertos a golpes, mulheres violadas ou queimadas vivas em suas casas, homens apunhalados até morrer.”. [PAPPÉ, pp. 262-263]
O historiador sionista Benny Morris fornece detalhes tétricos desse massacre:
“Um soldado, que foi testemunha ocular relatou que as FDI, capturando a aldeia ‘sem resistência’, inicialmente ‘matou cerca de 80 a 100 árabes [do sexo masculino], mulheres e crianças. As crianças eram mortas quebrando suas cabeças com paus. Não havia uma única casa sem mortos’. (...) ‘Um comandante ordenou que um solapador pusesse duas mulheres idosas em determinada casa (...) e que explodisse a casa com elas dentro. O solapador recusou-se. (...) O comandante ordenou então que seus homens pusessem as mulheres lá dentro e o horror foi cometido. Um soldado gabava-se de ter estuprado e atirado numa mulher. Uma mulher com um bebê recém-nascido nos braços era usada para limpar o pátio onde os soldados comiam. Ela trabalhou durante um dia ou dois. No fim, eles atiraram nela e no bebê. (...) oficiais preparados (...) se haviam transformado em assassinos primitivos, e isso não acontecia no calor da batalha (...) mas em consequência de um sistema de expulsão e destruição. Quanto menos árabes permanecessem, melhor. Este princípio é o motor político das expulsões e atrocidades’.” [MORRIS, Benny. The Birth of the Palestinian Refugee Problem. Em: FINKELSTEIN, p. 152]
Ao final dessa limpeza étnica – que em nada ficou a dever à sanha nazista e que é conhecida pelos árabes como Nakba (“Catástrofe”) –, “se havia desterrado mais de metade da população original da Palestina (cerca de oitocentas mil pessoas), destruído 531 aldeias e despovoado onze bairros urbanos.” [PAPPÉ, p. 11] Jerusalém Ocidental foi ocupada por Israel e Jerusalém Oriental foi entregue à Jordânia, cumprindo o acordo secreto entre Israel e o governante jordaniano.
O professor israelense Israel Shahak relatou que as aldeias palestinas foram “destruídas completamente, com suas casas, seus jardins e até com seus túmulos e cemitérios, de modo que não permaneceu literalmente pedra sobre pedra e aos visitantes de passagem dizia-se que ‘tudo estava deserto’.” [SAID, Edward W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. UNESP, 2012, p. 17]
Diante de tanta barbárie, Yossef Weitz, Diretor do Fundo Judaico, afirmou com desfaçatez:
“Fui visitar a vila da Um’ar. Três tratores estão terminando a destruição. Fiquei surpreso; nada em mim se comoveu diante da visão de destruição. Nenhum arrependimento e nenhum ódio, como se esse fosse o curso do mundo. Queremos nos sentir bem neste mundo e não em um mundo por vir. Queremos simplesmente viver, e os moradores daquelas casas de barro não queriam que vivêssemos aqui. Eles não só desejam nos dominar, como também queriam nos exterminar.” [SAID, pp. 117-118]
Através da expulsão dos palestinos, os sionistas obtiveram as terras necessárias para a imigração massiva de colonos judeus para o recém-criado Estado de Israel e uma nova correlação populacional. Isso não foi fruto do acaso, mas o resultado de uma política premeditada dos líderes sionistas. Segundo o já citado Benny Moore:
“A Resolução da Partição havia reservado cerca de 60% da Palestina para o Estado judaico; na maioria tratava-se de terras que não eram propriedade de judeus. Mas a guerra (...) se fosse vencida, como Ben-Gurion enxergava as coisas, pelo menos resolveria o problema de terras do Estado judaico. (...) ‘A guerra nos dará a terra. Os conceitos de ‘nosso’ e ‘não nosso’ são apenas conceitos de tempo de paz e durante a guerra perdem todo o seu significado. (...) No Negev, não haveremos de comprar terras. Vamos conquistá-las’.” [GURION, Ben. Citado por MORRIS, Benny. The Birth... Em: FINKELSTEIN, pp. 144-145]
Campos de Concentração, confisco de terras, proibição de retorno
Concluída a limpeza étnica e a ocupação de suas terras, nem por isso acabaram os sofrimentos dos palestinos. Afora os 800 mil desterrados, mais de quinze mil foram mortos durante a Nakba e outros dez mil aprisionados pelas tropas israelenses. Prosseguiram os saques às suas casas, o confisco de suas terras, a profanação de seus lugares sagrados. Sua liberdade de deslocamento, expressão ou manifestação foi suprimida. Em Haifa, os cerca de cinco mil palestinos que sobraram, após a expulsão de setenta mil, foram confinados em um único bairro, Wadi Nisnas, em uma das zonas mais pobres da cidade, onde passaram a viver em um gheto, similar aos que os nazistas criaram para os judeus durante a II Guerra Mundial. Grandes operações de “busca e captura” passaram a ser realizadas, aprisionando em campos de concentração todos os suspeitos de tentarem retornar às suas terras ou de se oporem à ocupação:
“O jornalista Yazan al-Saadi escreveu artigo publicado pela versão inglesa do diário Al-Akhbar sobre a existência de pelo menos 22 campos de concentração e de trabalho (...) Campos de concentração cercados de torres, rodeados por arame farpado, sentinelas nos portões, lembram aqueles famosos na Polônia. (...) De acordo com uma nota de novembro de 1948 no diário de David Ben Gurion (...) havia perto de 9 mil prisioneiros de guerra em campos naquele ano. (...) Declarou um detido em Umm Khalid entrevistado por Abu Sitta e Rempel: ‘Tínhamos de cortar e transportar pedras todos os dias em uma pedreira. Refeições diárias: uma batata na parte da manhã e metade de um peixe seco à noite. Espancavam quem desobedecesse ordens’.” [CARTA, Gianni. Pesquisa revela campos de concentração para palestinos após a fundação de Israel. São Paulo: Carta Capital, 18/10/2014]
Como resultado da Nakba, o Estado de Israel – que pela partilha da ONU receberia 57% da Palestina – apossou-se de 78%. Já o Estado Palestino, que ficaria somente com 43% do seu próprio país, teve 21% tomados por Israel, 20,5% pela Jordânia (através de acordo secreto com Israel) e 1,5% pelo Egito (Faixa de Gaza). Em consequência, mais de 900 mil palestinos passaram a viver confinados em campos de refugiados na Cisjordânia, Faixa de Gaza, Egito, Jordânia, Síria, Líbano, Iraque e outros países árabes. Hoje, com seus descendentes, são mais de cinco milhões de refugiados palestinos, espalhados por todo mundo. Desses, um milhão e meio vivem em 58 campos de refugiados oficiais sob, os cuidados da ONU.
Apesar desse terrível esbulho, a única atitude da ONU foi aprovar, em dezembro de 1948, a Resolução 194, assegurando o direito dos palestinos retornarem às suas terras ou, caso preferissem, serem indenizados pela sua perda. Sobre o seu direito a um “Estado Palestino”, nenhuma palavra.
Israel ignorou a Resolução 194 da ONU, não permitiu o retorno dos palestinos expulsos nem os indenizou. Os que tentaram retornar foram presos ou mortos. Apesar de tudo isso, Israel foi admitido pela ONU, em 1949, como Estado membro com plenos direitos...
Se já era uma injustiça inominável entregar 57% da Palestina à imigrantes judeus, sem qualquer consulta aos palestinos, com a Nakba o crime cometido foi ainda maior: o povo palestino teve 78% do seu território ocupado, foi expulso de sua própria Pátria e espera até hoje – passados já 68 anos – o direito ao seu Estado Nacional.
Sem dúvida, essa luta também é nossa!
* Raul Carrion é historiador graduado pela UFRGS, com Especialização em História Afro-Asiática na FAPA.Organizou e coordenou o 1º Foro Parlamentar Mundial Palestina Libre, realizado em Porto Alegre em novembro de 2012. É membro da Frente Gaúcha de Solidariedade ao Povo Palestino e Presidente da Fundação Maurício Grabois-RS.